Ainda não era seis da manhã quando abri minha lanchonete na rodoviária. Mais um dia. Gente de todo lado e pra todo lado .Por aqui tem sempre uma história, gente que vai e chora, gente que vem e chora, mala perdida, gente que perde a passagem, outros perdem a viagem, brigas, encontros e desencontros, algum trabalho pra polícia de vez em quando, e por ai vai. Movimento é o que não falta neste lugar. Eu já me acostumei a essa rotina. Também, estou aqui a dezenove anos, idade da minha filha mais nova. Sempre no caixa, afinal o estabelecimento é meu e como dizem, o olho do dono é que engorda o porco.
Apesar da rotina, não sei explicar, hoje foi diferente. Começou com uma senhora de cinqüenta e poucos anos, com um vestido vermelho, que chegou ao meu balcão e pediu a um de meus atendentes café com leite e pão com manteiga. Aquilo me chamou atenção. Não o que ela pediu, mas como ela pediu. Ouvi aquela voz baixinha pedir usando termos como: meu querido, por favor, se não for incomodar, você poderia fazer a gentileza de me servir e por aí vai. Fiquei encantado com a educação. E no final, veio um muito obrigada, um Deus lhe pague e fique com Deus. Mas o diferente mesmo, foi depois que ela saiu do balcão e foi se sentar nas cadeiras de espera, em frente a minha lanchonete. Em seguida sentaram junto a ela duas senhoras, uma mulher mais nova, uma menina de uns oito anos e dois meninos gêmeos idênticos inclusive nas roupas. Aos poucos percebemos que era avó, tia e mãe. Pela bagagem iam para longe. A menina era quietinha, sentadinha com uma bonequinha nas mãos parecia esperar tranqüila a hora da viagem, mas os meninos, não paravam quietos. Se ouvia a todo instante alguém chamar por eles. Eric Patric, venham pra cá. Eric Patric, saiam daí, Eric Patric, parem de correr, parecia até um nome só. Eric Patric pra cá, Eric Patric pra lá. Aliás eles pareciam um só. Por uma única vez escutei o nome da menina, Pâmela. Só nome de artista! A senhora de vestido vermelho e de voz baixinha, voltou a minha lanchonete e pediu uma garrafinha de água. Ao me dar o dinheiro me disse: olha que graça esses meninos gêmeos, cabelinhos enrolados , parecem com São João Batista. Umas gracinhas! Que pareciam com São João Batista, eu até concordei, mas de santos não tinham nada. Que meninos levados! E a gritaria Eric Patric continuava. Até que de repente, todos se levantaram e começaram o olhar em volta, inclusive a senhora de vermelho. Fiquei curioso. A mãe começou a se desesperar. A avó com as mãos na cabeça, a tia fazendo o sinal da cruz, Pâmela continuava sentada com sua bonequinha e a senhora de vermelho olhava para todos os lados. O curioso é que ninguém falava nada, até que a mãe chegou bem perto de um dos meninos, olhou bem para ele por um tempo e depois gritou com toda força: Patric, onde está você? Entendi na hora. Um dos meninos tinha sumido. E só a mãe para saber qual.E a gritaria continuou, era Patric pra lá, Patric pra cá . Eric foi usado como modelo, um retrato falado ao natural. E ele ia pra todo lado no colo da avó e o que se ouvia era: o menino que sumiu é igual a esse. Chegou segurança, polícia, depois o pai e o tio da criança. Começou uma mistura de gritaria com choradeira. De repente, no meio daquela confusão a senhora de vermelho chegou até a mim e com sua voz baixinha e seu jeito educado, me perguntou se eu poderia dar a ela o número do meu telefone para que quando chegasse ao seu destino, pudesse me ligar para saber se acharam o menino, que ela estava indo com o coração apertado. Estava sofrendo com o sofrimento da família. Pensei comigo, pessoa de coração bom, de sentimento. Dei o telefone da lanchonete e do meu celular. Ela me agradeceu com aquele jeitinho e foi pegar o ônibus ainda em meio ao tumultuo e desespero da família. Aquela tarde foi longa. Até o meio da noite, nada de Patric. E os comentários não eram bons. Muitos roubos de criança sem solução. Já estava arrumando as coisas para fechar a lanchonete quando o meu celular tocou. Era ela, a senhora de vermelho. Atendi e ouvi aquela voz baixinha que me falou boa noite, desculpe por estar incomodando entre outras coisas e finalmente me perguntou com uma voz tremula: O nosso São João Batistinha apareceu? Fiquei por um segundo congelado, não sabia como dizer a ela. Tive pena , um coração tão bom! Então,sem pensar muito, falei que o tinham encontrado no banheiro das mulheres e que tudo ficou bem. Afinal, mesmo que o encontrassem, nem eu saberia. Porque então deixá-la sofrer em seus pensamentos. Achei melhor assim. Pelo menos desta forma, Patric voltou para alguém.
Ismélia Rodrigues Monteiro
Ismélia Rodrigues Monteiro
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